Chá ou Café?

Chá. Chá preto, chá verde, chá mate, chá de lírio, chá de cogumelo.... para reunir os amigos, para conversar, para viajar... Histórias mais filosóficas, mais sensoriais, mais espirituais, mais... ........................................... Café. Café curto, café longo, café com um pouquinho de leite. Pra acordar, pra deixar ligado, pra tomar rapidinho no balcão. Histórias do dia a dia, teorias de 2 segundos, pirações mais terrenas...

sexta-feira, setembro 04, 2015

A vontade de fazer xixi e a teoria da relatividade – uma história de chá, de não-beba-isso

Já reparou que, quanto mais perto do banheiro, maior sua vontade de fazer xixi? Você tá lá, na rua, caminhando despreocupadamente aí, de repente, começa a sentir aquela vontadezinha chegando, bem de manso, sorrateiramente, só se insinuando. Você, no controle da situação, nem liga. Não dá a menor bola e continua o seu caminho.

Passam alguns minutos e a vontade volta um pouco mais insistente. Dá um cutucão, te puxa pra trás. Você para, retoma o fôlego e volta a deixar claro quem é que manda. A partir de então, não há mais volta. Ela vai mandar você ir procurar um banheiro, você vai mandá-la calar a boca, porém sem que ela perceba, já está procurando na mente a localização do vaso sanitário mais próximo.

Você muda seu itinerário, aperta o passo e já não consegue pensar em mais nada. Apenas naquela vontade insuportável de fazer xixi. Impossível se concentrar em qualquer outra coisa ou tomar alguma conclusão. Xixi, xixi, xixi, é tudo o que você consegue pensar. E quanto mais perto do banheiro, mais sua dor aumenta.

Finalmente você chega em casa. O elevador demora uma trajetória inteira do cometa Halley pra chegar. A chave teima em não entrar na fechadura. Nisso, você já está a ponto de explodir. Tão perto e tão longe. A impressão é que, nesse momento, o banheiro passa a exercer uma inexplicável força de atração sobre sua bexiga. Como se você perdesse completamente o domínio de suas funções mais básicas. A porta abre e é como se o xixi fosse magneticamente atraído pelo vaso, ele já quer sair. Você corre antes que algo pior aconteça e encontra seu destino. Pronto. Alívio. Os astros já podem voltar a girar, a humanidade já pode voltar a guerrear e seus pensamentos já podem voltar a fazer sentido outra vez.

Eu acho que a variável “vontade de fazer xixi” definitivamente deveria ser incluída na nova revisão da teoria da relatividade. Isso porque é uma força que realmente tem o poder de distorcer a relação espaço-tempo. Tudo o que é perto fica longe, cada segundo demora uma eternidade para passar. Quando você está com muita vontade de fazer xixi, é como se um buraco negro se abrisse, sugando todas as suas noções mais básicas, suas convicções e sua capacidade de raciocinar. Você entra em um estado em que espaço e tempo não fazem mais o menor sentido, as distâncias expandem, o presente congela no ar. Não é possível que isso não seja o mais próximo que possamos chegar de abrir uma fenda na realidade.

Dessa forma, da próxima vez que você estiver morrendo de vontade de fazer xixi, apertado mesmo, tente encara tudo como se fosse uma experiência astrofísica. Pense no Einstein, lembre-se de Newton, tente imaginar sua importância no universo, imagine seu xixi solto no vácuo e sinta toda essa energia cósmica de poder alterar, apenas com a força de sua bexiga, os frágeis átomos que compõem a nossa existência.

terça-feira, julho 07, 2015

Eu, uma pedra – uma história de chá, de quebra-rocha

Semana passada dava pra ver Vênus e Júpiter brilhando juntinho, juntinho no céu estrelado. Cada noite mais próximos até que quase viraram um. Não eram estrelas, eram planetas. Não é tão comum ver planetas assim, tão grandes, tão brilhantes. Aliás, para uma pobre mortal como eu, não é tão comum olhar para o céu e saber o que se está enxergando. O que eu estou chamando de estrelas será que são realmente estrelas? Não são planetas? Satélites, lixo estelar? Amontoados gigantes de gases e matéria? Não sei. Sei apenas que são passado. Aquela história de que a luz demora tanto tempo para viajar no espaço e chegar até as nossas retinas, que estamos olhando para o passado.

Mas muito além de toda essa questão astronômica e quântica, isso porque eu nem quis entrar no mérito astrológico da coisa, olhar para esses planetas me faz pensar que de maneira algumas eles podem ser despossuídos de vida. Tá, não há vida como a conhecemos nem em Vênus, nem em Júpiter, não que saibamos. E até onde vai o nosso conhecimento, também os julgamos como dois astros estéreis, incapazes de gerar vida. Entretanto, acho tão difícil pensar neles como simples matéria morta dividindo o mesmo sistema solar com a gente.

Se eles estão ocupando um espaço nesse universo, eles estão vivos, eles têm alguma razão para estarem lá. Afinal, tudo isso que a gente conhece dentre tantas galáxias e principalmente o que a gente desconhece é um organismo vivo que se completa, se expande e se retroalimenta. É impossível pensar que algo que está ali, que faz parte, não tenha uma função, mesmo que mínima, e se tem função, tem vida, tem uma história, tem um porquê.

Ao olhar para Júpiter e Vênus no céu, tenho a mesma sensação que me abate quando olho para uma rocha de origem muito, muito antiga. Uma dessas rochas magmáticas ou derivadas. Essas que você olha e pensa, isso tá aqui há bilhões e bilhões de anos, eu não sou nada perto dessa rocha. E aí, eu não consigo acreditar que algo que tenha assistido a ascensão e queda de diversas civilizações, o surgimento e a extinção de diversas espécies, que tenha tanta vida guardada e acumulada dentro de si, que tenha experimentado tanta coisa que eu nunca terei condições de viver, não esteja viva. Sem aquela rocha talvez a minha vida não fosse possível. Impossível pensar nela apenas como matéria inanimada. Morta.

Os humanos definiram que tudo o que contém carbono tem vida. Tá, pode ter lá seu sentido científico. Mas acho que metafisicamente e filosoficamente podemos ir além, muito além. Como as rochas. Incansáveis, intrépidas, impávidas, imóveis e praticamente indestrutíveis à ação do tempo e do espaço. Talvez seja esse o exercício, tentar ver e conceber a vida do ponto de vista de uma rocha. Com paciência, com firmeza, com resignação, com calma, com tranquilidade e com tudo o mais que vai na contramão da ansiedade, essa sim nossa grande matéria morta.

quinta-feira, junho 18, 2015

Afinal, o que você quer da vida? - uma história de chá, que quer ser apenas chá

Sombra e água fresca, claro. Se bem que, no meu caso específico, a resposta seria seria sol, coqueiros, mar, cerveja ou caipirinha de caju. Com cachaça, por favor.

Desde que a gente veio ao mundo, desde que a gente se entende por gente, é sempre a mesma pergunta. O que você quer ser quando crescer? Já escolheu a faculdade? Já escolheu a sua especialização? O que você gosta de fazer? Pra que raios você serve? Qual seu papel social? Qual seu valor para a comunidade?

Não é fácil não. Primeiro você nasce para ser o filho perfeito. Depois você cresce para ser o aluno exemplar. Depois você tem a obrigação de ter uma carreira. Depois, o dever de ter uma família. Depois, uma aposentadoria confortável e, por fim, uma morte que deixe um legado. Em que momento você teve tempo, ou melhor, espaço para poder responder o que você realmente queria da vida? Você já nasce com a obrigação de satisfazer os desejos, as expectativas, as frustrações dos seus pais para depois passar o resto da vida tentando satisfazer os desejos, as expectativas e as frustrações de todo mundo ao seu redor, e ainda tem uns e outros que têm a cara de pau de te incomodar perguntando o que você quer da vida.

O que eu quero da vida? Eu quero paz, isso sim. Quero um minutinho de silêncio por favor. Quero não ter que responder nenhuma pergunta pela próxima hora. Quero ficar aqui tostando no sol sem que ninguém me lembre do filtro solar. Quero apenas ser, sem ter que fazer nada. Hoje você não é ninguém, a não ser que você faça algo. O que você faz? Ah, eu sou veterinário, mas também ajudo na ONG dos animais pela vida, faço aula de de mandarim e realizo oficina de bilboquê com garrafa pet. Mas o que raios você é? Bom, eu sou um ser humano. E? E o que? E o que você é? Ah, eu sou veterinário, mas também ajudo na ONG dos animais pela.... zzzzzz

Ninguém mais tem o direito de ser o que se é. Todo mundo é o que faz. E quando você simplesmente se dá o direito de ser, SER tranquilo, SER despreocupado e porque não dizer até SER um tando preguiçoso, as pessoas já vêm logo enchendo o seu saco, o que você quer da vida? Oras, eu quero apenas isso. Quero ser quem eu sou e pronto. Sem ter que fazer nada para validar isso.

O que eu quero da vida. Bom, eu quero que ela seja agradável na maior parte do tempo. Eu quero ter sabedoria para lidar com meus problemas e serenidade para lidar com todas as dificuldades que aparecerão. Eu quero aprender com a dor e quero não superestimar a alegria. Eu quero ter tranquilidade para fazer as coisas no meu tempo. E quero tempo para fazer menos coisas ainda do que faço, sem ninguém me puxando a orelha por isso. Eu quero observar as nuvens, contar as estrelas e ouvir música nesse meio tempo.

Eu entendo que existe muita gente que não concorda comigo. Que tem uma visão clara de sua missão e função nessa grande empresa da vida, e se sente muito bem em poder trabalhar diariamente em busca de seus objetivos e ideias. Eu compreendo e admiro. Quiça até invejo um pouco e gostaria de ter algumas dessas certezas na minha vida tão repleta de dúvidas e inadequações. Acho que é de gente assim que o mundo realmente precisa. Mas aí eu volto a mim mesma e penso, pra que lutar contra o que sou, se já é tão difícil ser? Melhor fazer as pazes comigo mesma e assumir que nessa vida, eu vim apenas a passeio.

quarta-feira, junho 17, 2015

Saia da sua zona de conforto! - uma história de café, embaixo da coberta

Isso pode fazer muito sentido hoje em dia, na era do individualismo e da competição, mas duvido que tenha sido sempre assim.

Imagina se uma duquesa iria falar para uma marquesa, ai miga, preciso sair dessa zona de conforto, não aguento mais o confeiteiro que faz todos os doces que eu gosto, a minha dama de companhia que me veste todo dia, e esses vestidos lindos que eu vivo ganhando do James.

Ou então se no auge da era clássica, Platão iria virar para Aristóteles e mandar ele sair da zona de conforto das discussões na ágora de Atenas e ir carpinar uns lotes.

É impossível até dizer isso para um gato ou cachorro. Vai cachorro preguiçoso, sai dessa sua zona de conforto, para de tomar sol e vai caçar alguma coisa. Ou então, para de dormir gato acomodado, sai logo dessa sua zona de conforto e vai procurar uma ocupação.

Até no tempo do feudalismo eu duvido que um servo virava pro outro e dizia, tá na hora de sair dessa zona de conforto e começar a cuidar dos lotes do senhor feudal aqui do lado também para ver se a gente fica rico de uma vez. Duvido.
 

Esse negócio de sair da zona de conforto é superestimado. Se é confortável, pra que raios eu vou sair? Pra sofrer? Pra me dar mal? Eu não, eu vou ficar por aqui, que ao menos é quentinho.

terça-feira, junho 02, 2015

Descobri que sou alérgica à vida – uma história de chá, alergênico

Sou alérgica à raiva e à agonia que fazem meu sangue ferver
Que fazem minha ansiedade querer sair pelos poros de minha pele
Sou alérgica aos ares de indiferença
Que entopem minhas vias e me fazem sufocar de auto-penitência
Sou alérgica à ingratidão
Que inflama meus olhos e derrama esperanças em pesadas gotas
Sou alérgica à palavras não ditas
Que incham minha glote e me fazem querer gritar quando não há ninguém para ouvir
Sou alérgica à poeira do tempo
Que coça meu corpo inteiro numa vontade de fazer o que não dá mais para ser feito
Sou alérgica a imagens antigas
Que tiram a força de minhas pernas e me impedem de dar um passo adiante
Sou alérgica ao frio na espinha
Que me lembra de tudo o que eu tenho que esquecer e que ainda me persegue

Descobri que sou alérgica à vida
E que viver provoca reações adversas
E que o único anti-histamínico possível
É se perdoar e não olhar para trás

quarta-feira, março 18, 2015

Outro dia – uma história de chá, irreal

a espera é a mesma
a expectativa é a mesma
a angústia é a mesma
a decepção é a mesma
a fragilidade é a mesma
a desconfiança é a mesma
a ilusão é a mesma
a insegurança é a mesma
a solidão é a mesma

só a realidade
que mudou

segunda-feira, dezembro 01, 2014

Pare já de sofrer, chame a Super-Sofri! - uma história de chá de miséria

É um corvo, é um urubu? Não é a Super-Sofri!

Super-Sofri? É, Super-Sofri, a super-heroína com poderes sobrenaturais de sofrimento. Nascida em um tempo não muito distante do nosso, ela veio à Terra com a missão de sofrer por nós. Com tolerância a altas doses de sofrimento, punição, dores de forma geral e misérias de toda espécie, a Super-Sofri está sempre pronta a ajudar.

Sofrendo de um incrível complexo de Jesus Cristo, a Super-Sofri também nasceu para nos salvar, nos salvar do sofrimento inerente à experiência humana, nos salvar das profundas escaras dos erros e quiça até nos salvar de nós mesmos. Possuindo olhar infravermelho de culpa, ela é capaz de identificar a aflição mais íntima de cada mortal para que possa ela própria sofrer por cada um de nós.

Aliás, seus suprimentos infinitos de culpa são seu combustível mais valioso. Com capacidades extraordinárias de fagocitar todo tipo de responsabilidade alheia, ela absorve como uma esponja tudo de ruim que está ao seu redor, porque acredita que nesse mundo de dor e provação, apenas ela tem as capacidades necessárias para lidar com tamanho sofrimento.

Sabendo-se não merecedora de nenhum benfazer, carinho, piedade ou admiração, a Super-Sofri também não gosta de ser reconhecida e dispensa qualquer tipo de reconhecimento ou elogio. Por isso, nada de pará-la na rua para uma selfie ou um autógrafo. Sua única fonte de prazer é poder proporcionar a si mesma toda sorte de sofrimentos que puder, e principalmente que não puder aguentar.

Sua retroalimentação à base de dor infinita é o que a mantém viva, dia após dia, sempre em busca de novas fontes de sofrimento estejam elas onde estiverem, sejam elas de quem forem.

Acreditando merecer todo o mal que existe nessa vida, e nada de bom, ela segue tecendo as tramas dessa ilusão, obstruindo sua já obscura visão do mundo que pretende salvar, preocupando-se com todos os tipos de bestialidades, apenas para não ter que salvar a si mesma.

quarta-feira, novembro 12, 2014

Quando em situação de pedestre, se desespere - uma história de café, sem volta


Eu perco a fé no futuro da humanidade toda vez que atravesso a rua.

E nem é uma questão filosófica quanto ao propósito de atravessar a rua. Nem existencial quanto a finalidade de atravessar a rua se ainda permaneço praticamente no mesmo lugar.

O problema é que, toda vez que decido atravessar a rua, na faixa, sou obrigada a enfrentar seres humanos aparentemente iguais a mim, porém totalmente fora da realidade. Alucinados. Completamente alucinados. Beirando surtos psicóticos. Eu sei que todos eles se encontram, naquele momento, vestindo armaduras de uma tonelada. Só não entendo como esse fator da engenharia consegue alterar o funcionamento de seus cérebros.

É tudo muito simples. Somos todos seres humanos. Alguns com mais humanidade do que os outros, é claro, mas isso não vem ao caso. Entretanto, basta o dito cujo estar montado em um veículo automotor para esquecer completamente o que é ser de carne, osso e sangue, ter que usar as pernas para se locomover, e pior, usar a massa encefálica para pensar.

Será que é tão difícil assim para uma pessoa em situação de motorista ter empatia por uma pessoa em situação de pedestre?

Somos todos pessoas afinal, não? Pele, ossos, músculos, gordura, muita gordura. O que custa, do alto de seu assento confortável e de seus pneus com freios ABS olhar para outro ser humano e enxergar um igual? É tão difícil assim?

Por que tanta raiva? Por que motoristas olham para pedestres com tanto ódio? Por que passam em alta velocidade na faixa de pedestres, encarando o pedestre com um risinho de eu-podia-estar-te-matando, só-não-faço-isso-porque-hoje-não-é-dia-de-lavar-o-carro?

Não consigo entender como um carro pode mudar tanto o caráter e a personalidade de alguém. Não consigo entender como alguém pode se achar no direito de tirar a vida de outro igual, simplesmente porque está vestindo uma capa de lata, ou que seja fibra de carbono.

É por isso que eu perco a fé na humanidade. Se o ser humano não é capaz de enxergar seus iguais em uma situação tão banal e cotidiana como atravessar a rua, nada mais é possível e não há mais salvação. Seremos todos atropelados como galinhas de estrada por pessoas com tanta essência quanto suas SUVs.

terça-feira, julho 29, 2014

Penhorei meu nariz - uma história de café, sem volta



Quando a gente é criança, fica sonhando com o dia de ser dono do próprio nariz. Fica imaginando como deve ser bom ser livre e poder fazer tudo o que quiser, sem ninguém pra dizer que não pode, ou que ainda não somos grandes o suficiente.

Aí a gente cresce e entende que, para ter liberdade para fazer tudo o que se quiser, temos que, antes, vender aquela ilusão de liberdade para algum idiota que vai ser dono de nosso tempo e nossa imaginação, em troca de alguns trocados para comprarmos nosso direito de liberdade de volta, na forma de pequenos passatempos de adulto, a fim de preencher o vazio que fica quando percebemos que ser livre era apenas um sonho infantil que colocaram à venda sem que você pedisse.

Quando a gente é criança, fica sonhando em ser dono do próprio nariz. Aí cresce, e descobre que pra ser dono do próprio nariz, tem que vender ele antes pra alguém.

quinta-feira, junho 26, 2014

Do ponto de vista da água - uma história, de chá da bica



O otimista vê o copo meio cheio.
O pessimista vê o copo meio vazio.
O alarmista vê a última gota que faltava para o copo transbordar.
O exagerado vê tempestade em copo d'água.
O folião vê água em copo de cachaça.
O fatalista vê a água escorrendo pelo ralo.
O conformista vê a água ir pela correnteza.
O cientista vê vida onde há água.
O teimoso vê água mole em pedra dura.
O quixotista vê moinhos onde não passam águas.
O orgulhoso vê a água que nunca beberá.
O pé-de-cana vê água que passarinho não bebe.
O poeta vê lata d'água na cabeça.
O inescrupuloso vê volume morto onde já não há mais água.

sexta-feira, maio 30, 2014

Vida Rica – uma história de café, de cocô de passarinho



Presídios superlotados. Alta nos índices de roubos, furtos, latrocínios e homicídios. Quem vê o noticiário tem a impressão de que nunca foi tão perigoso viver no Brasil. Culpa-se a falta de educação, de segurança, de meio social saudável. Na maioria das vezes, esses culpados são sintomas, e não causas.

A verdadeira causa, aquela que todo mundo sabe, mas prefere não ver, é a má distribuição de renda, a desigualdade social.

O brasileiro médio vive dizendo que vai sair do país e morar na Europa. Aquilo é que é continente sério, justo, seguro. Entretanto, quando esse mesmo brasileiro chega lá, invariavelmente se decepciona com seu sonho. Sim, o transporte público funciona, a segurança funciona, o sistema de saúde funciona. Mas não existe desigualdade social. E isso, faz falta.

Faz falta porque não é possível contratar alguém para limpar seu banheiro. É preciso pagar salário de gerente para ter uma empregada doméstica. Mesmo aqui no Brasil, as pessoas já começam a sentir isso. Com a mínima melhora na distribuição de renda e o aumento nas oportunidades, o número de faxineiras reduziu, e o valor que elas pedem aumentou, escandalizando o brasileiro médio tão acostumado a explorar a pobreza de seus concidadãos.

Na Europa, com uma melhor distribuição de renda, o brasileiro médio logo descobre que todo mundo ganha mais ou menos a mesma coisa. E isso incomoda. Como assim ele não pode ser melhor do que ninguém pelo dinheiro que faz ou pelo o que possui? Tenho dois casos de amigos próximos para ilustrar. Um casal voltou recentemente quando percebeu que o topo de seu salário em um alto cargo empresarial era o mesmo que ganhava um marceneiro no tal país europeu. Outro retornou à pátria amada porque o marido, europeu, não era ambicioso o suficiente, se conformava em ganhar apenas o suficiente para viver, não tinha sonhos de enriquecer. Voltaram para fazer fortuna no Brasil, à custa dos outros, é claro.

O brasileiro médio reclama dos impostos, da falta de segurança, do risco à roubos, mas quer se manter “superior”aos demais. Quer ficar rico, quer ter empregados. Para ele, o mais importante é que a má distribuição de renda nunca acabe. Como é que ele vai ganhar, por um trabalho intelectual, o mesmo que um vagabundo ganha por um trabalho braçal? É um absurdo. Qualquer um pode levantar uma parede. Eu receio que não.

Esse brasileiro médio não percebe que, enquanto ele tem muito, e outros tem muito pouco, ele desperta a inveja, a raiva, o sentimento de desigualdade e injustiça. Ele trabalha, ganha dinheiro, compra seu objeto de desejo, uma SUV, e sai desfilando por aí. O pobre ajudante de pedreiro que trabalha feito um burro de carga e sabe que nunca vai conseguir juntar dinheiro o suficiente para comprar o mesmo veículo, um dia se cansa, vai pra rua e decide roubar seu também objeto de desejo, uma SUV.

Não estou dizendo que uma coisa justifica a outra, longe disso, muito menos que isso é regra geral, foi só um exemplo fictício. Minha intenção é apenas lembrar que, se todos tivessem as mesmas oportunidades, ou pelo menos oportunidades mais próximas, diminuiríamos, e muito, a criminalidade. Foi isso que a Europa fez. São poucos os salários milionários, tanto nos cargos públicos, como privados. São menores as diferenças de teto salarial, tanto nos empregos em corporações, quanto serviços. Isso gera mais satisfação, aumenta a sensação de justiça e merecimento, diminui a ganância, a ambição, a inveja e a propensão à corrupção. Ninguém precisa ter mais que o outro, ninguém precisa ser superior, ninguém precisa pisar em ninguém. Podemos ser todos iguais.

Inclusive, se salários exorbitantes não fossem possíveis, você não precisaria trabalhar 14, 16 horas por dia na esperança de enriquecer. Não iria fazer a menor diferença. Você não iria ficar mais ou menos rico mesmo. Aí, dava para trabalhar 8, 6, 4 horas por dia. E passar o resto do tempo com a família, os amigos, curtindo por aí. Aliás, os preços das coisas não seriam tão caros também, porque os salários não seriam tão díspares. E aí, você poderia não ser rico em cifras mas, provavelmente, seria muito mais rico em vida.

quinta-feira, abril 17, 2014

Será que o sol se sente realizado?


Ao contrário do que eu achava ter aprendido na escola, o sol não é uma bola sólida de terra incandescente, queimando sem parar. Ele é um aglomerado de gases e metais, girando em torno de um núcleo também feito de gases e metais, o que o faz estar bem distante de um sólido ou de uma massa homogênea.

O que une esse monte de gases e metais nesse formato circular é uma energia tremenda que atrai uns aos outros e os mantêm unidos brincando de rodar na mesma direção. É como ficar para sempre no looping da montanha russa sem correr o risco de cair.

Ou seja, o sol é um aglomerado de muita energia.

Aí eu paro e penso. Como é que essa fonte, vamos dizer praticamente inesgotável de energia, não se cansa de fazer sempre a mesma coisa? Como é que aguenta levantar todo dia e se por todo dia, pra voltar no dia seguinte e fazer a mesma coisa, e fazer a mesma coisa, e fazer a mesma coisa.

Com tanta energia disponível e tantas oportunidades e possibilidades por aí? Ficar sempre no mesmo...

É pior que o castigo de Sísifo!

Eu que não tenho um milionésimo de toda a energia do sol, mal aguento a prisão da rotina diária, imagina ele?

Pensa, o que é ter boa parte de toda a energia do universo, tá bom, do universo não, da Via Láctea e não poder gastá-la com coisas mais interessantes do que girar em torno de si mesmo igual cachorro correndo atrás do rabo.

Eu e minha modesta energia mal conseguimos ficar paradas um dia inteiro no escritório, imagina se tivéssemos que passar o resto da vida girando feito tontas, enquanto os amigos e familiares orbitam ao redor.

O sol é um guerreiro!

Sempre fui uma das maiores fãs do sol. Carteirinha do clube e tudo. Fico triste quando ele não aparece e admiro muito sua resignação em dar as caras todo santo dia, mesmo que às vezes umas nuvens recalcadas ofusquem sua beleza. Mas nunca imaginei que seu esforço fosse tamanho.

É fato. Meus dias ficam muito mais alegres quando o sol brilha no céu. As cores ficam mais bonitas, as pessoas mais atraentes e mesmo as tristezas mais escondidas. Mas daqui pra frente, mais do que tudo isso, agora ele virou sinônimo de paciência.

Aguentar fazer a mesma coisa todo dia, milhares e milhares de anos, talvez por toda a eternidade, tendo energia suficiente para correr o universo inteiro e, mesmo assim, aceitar sua sina facilmente não é pra qualquer um.

O que me leva a uma última pergunta. Será que ele faz tudo isso de bom grado, ou obrigado? É trabalho escravo, voluntário, ou assalariado?

Independente da resposta, só espero uma coisa. Que nunca em sua existência, o sol tenha que encarar a ansiedade gerada pela superestimação de sua produtividade.  

quarta-feira, janeiro 22, 2014

Meia-Lua – uma história de chá, de manhã


O sol brilha forte no alto do céu, enquanto a lua se põe preguiçosamente.

Camaleoa, ela finge que é nuvem. Floquinho sobre floquinho. Lembra um coelho. Tem gente que diz que dá para ver um coelho na lua cheia. Vi certa vez. Nesse momento, isso faz todo o sentido.

Lembro das aulas de ciência. O que você está vendo é a lua refletindo os raios do sol. No momento, sinto apenas os raios na minha cabeça. Faz um calor do cão. Estou refletindo suor. Não consigo imaginar como esses mesmos raios possam deixar a lua assim, tao fofa, enquanto eu me derreto em líquido.

Talvez seja por vontade dela. Talvez queira brincar um pouco de ser nuvem. Deixar de ser rainha. Esvanecer no infinito. Etérea. Ou esteja se disfarçando para não ser vista. Vai embora de fininho, em pleno arder do meio-dia. Ficou na farra até de manhã. Cedinho. E agora vai tomar um banho de mar e descansar.

Lá se vai ela. Alcançando o horizonte. Logo logo mergulha. Se desfaz na água. Vira espuma e vem brincar comigo. Aqui na arrebentação.  

terça-feira, dezembro 17, 2013

Quando eu desisti de salvar a humanidade – uma história de café, apocalíptico


Quanta pretensão...

Mas eu desisti de salvar a humanidade no dia em que eu percebi que ela não quer ser salva.

Não, não quer ser salva. Se quisesse já tinha se salvado. Quem quer mudar, acaba mudando a si e também ao seu redor. Quem busca por mudança, encontra. De um jeito ou de outro, encontra. Ou a mudança encontra a pessoa.

Mas a verdade é que a grande maioria não quer mudar. Pra grande massa, tá bom do jeito que está. Afinal, quem quer muda. Se todo mundo quisesse a mesma coisa, já tinha mudado. E todo mundo sabe que se os pequenos que são muitos se unem, dão um coro nos grandes que são poucos, mas ninguém tá a fim disso não.

Mesmo porque pra cada salvador existe um ideal de salvação. Mártires existem aos montes. Redentores também. Mas nada garante que eles desejem caminhar juntos, muito menos na mesma direção. E, mais do que isso, talvez eu ou você não concordemos com eles.

Cada salvador desenha sua salvação e segue. Vai atrás quem concorda, ou acidentalmente tá cruzando o mesmo caminho. Mas infelizmente a minha salvação não é a sua ou a dele. E a gente já viu que impor salvação nunca acaba bem. Tem que ser a vontade de cada um.

A única coisa que todos nós mártires, salvadores, benfeitores de bom coração temos que concordar é que a estrutura básica nunca muda e nem há de mudar. Se tem uma coisa que a humanidade sempre foi boa em perpetuar, não importa o messias da moda, é a eterna relação dominado – dominador.

Quem é dominado sempre sonha em um dia ser dominador, seja por vingança, ambição ou puro divertimento. E se isso não há de mudar nunca, segundo a minha doutrina, não há salvação.

Entretanto, sei que segundo o livro sagrado de muitos outros, nessa equação aí, já estamos salvos.

Então, o fato é, quem quer, muda. O que não muda é a maioria que segue querendo e buscando a mesma coisa, sonhando em ser dominador pra poder esquecer que já foi dominado.

quinta-feira, dezembro 12, 2013

No meio do caminho - uma história de chá, na rua

O sapatinho no canto da calçada
O homem passeando seu cachorro imaginário
A senhorinha sem o gato

O cano estourado jorrando água
O picolé derramado
A bicicleta na contramão

Alguém de terno perdido
Alguns passarinhos de tricô
Algo de chuva no ar

quarta-feira, outubro 30, 2013

Corra Totó, corra - uma história de café, pra ontem


Como é que nos tornamos tão obcecados por velocidade?
De onde veio essa fixação por rapidez?
Por que é que tudo hoje em dia é urgente?

As pessoas se agarram à boia da urgência, mas nem se dão conta de que estão sem rumo, soltas em alto mar há muito e muito tempo...

Os paralelepípedos deram espaço ao asfalto para que pudéssemos correr mais rápido em carroças ultra sofisticadas. As palavras deram espaço às abreviações para que pudéssemos nos comunicar muito mais rápido. Os telefones deram espaço aos celulares para que pudéssemos nos achar muito mais rápido.

Mas pra quê? Pra quê?

Até a comida hoje em dia é rápida. Em poucos minutos qualquer idiota prepara uma refeição de plástico com gosto de isopor que enche a barriga e entope o cérebro, só para que tenha mais tempo para socorrer as necessidades inadiáveis de seu dia.

As mulheres já não andam mais elegantemente de salto por aí. É bem complicado andar rápido em saltos altos. Correr, então, nem se fala. E quem é que tem tempo de andar calmamente hoje em dia?

Só vagabundo mesmo. O resto, todo mundo corre. E se não corre, deveria estar correndo. Porque o tempo urge. Mas urge pra quê?

Nunca se viveu tanto na história da humanidade e mesmo assim as pessoas seguem reclamando que não têm tempo. Sonhando com dias com mais horas. E mais horas pra quê? Pra correr um pouquinho mais, claro. Descansar é coisa de desocupado. E ninguém aqui quer ser chamado disso.

Tudo tem que ser rápido. A conexão mais rápida para poder acessar mais coisa em menos tempo, para ter mais informação, para trocar mais dados. O trabalho mais rápido para que possa produzir mais, para ganhar, para gastar mais.

Antes falava-se pausadamente, antes caminhava-se distraidamente, antes os carros não passavam dos trinta quilômetros por hora, as notícias demoravam dias para chegar, os filmes não estreiavam às baciadas e estávamos todos bem.

Agora tudo voa diante de nossos olhos e só posso me perguntar para quê? Certamente não é para que as pessoas tenham mais tempo para si, ou para suas famílias, ou para descansar, muito menos para fazer nada.

Acho que nem se sabe mais porque se corre. Cachorro correndo atrás do rabo. Um círculo sem fim e sem sentido algum.

Aristóteles disse que a escravidão acabaria quando as ferramentas trabalhassem por si mesmas. Ledo engano, hoje temos máquinas para trabalhar, nos servir e transportar e nunca fomos tão escravos. Escravos de nosso próprio tempo. Tempo que nos privamos em nome de eu nem sei mais o quê.

quarta-feira, setembro 04, 2013

Existencializando na fila do banco – uma história de café, de repartição


Fila de banco sempre me desperta um sentimento metafísico.

É aquele negócio, você tá ali, ocioso, no meio de desconhecidos, olha pro tempo, o tempo não passa. Aí você lembra que o tempo é relativo. Então resolve contar quantas pessoas têm à sua frente. Analisa o espaço que estão ocupando. Faz contas para tentar prever quanto tempo vai demorar pra chegar a sua vez e, de novo, se lembra que tanto o tempo, quanto o espaço são relativos.

Nesse preciso momento em que toda a teoria da relatividade passa diante dos seus olhos, e você se depara com a triste realidade em que está preso, é que cede aos devaneios, principalmente os existencialistas.

Porque, né, não existe lugar mais propício para um existencialismo do que fila de banco. Todas as questões fundamentais da vida começam a se esfregar libidinosamente na sua cara.

O que é que eu tô fazendo aqui?
Qual é o sentido disso tudo mesmo?
Não tem um jeito de acabar com isso mais rápido?
Será que falta muito pro fim?
O que eu fiz para merecer isso?
Por que é que eu tenho que aguentar esse tipo de coisa dessas pessoas?

E a lista poderia ser muito mais extensa, beirando é claro um niilismo pouco poético, mas talvez até um tanto tuberculoso, porém é melhor parar por aqui.

Aí então esses pensamentos quase-suicidas dominam a sua mente durante toda a sua via-crúcis até atingir a boca do caixa, não sem antes ser interpelado por um ou dois vovôs e vovós falantes e muito bem humorados (eles já superaram o existencialismo há muito tempo), e finalmente quando você é atendido, lhe ocorre a iluminação final, a grande epifania.

Vou fechar essa porra dessa conta nesse banco. Morte aos porcos capitalistas.

terça-feira, julho 23, 2013

Os excluídos são os outros – uma história de chá, com exclusividade


Excluir: expulsar, retirar, rejeitar, privar de posse.
Exclusivo: que exclui, restrito, privativo.

Duas palavras com o mesmo radical. Com a mesma origem. Entretanto, enquanto todo mundo quer ser exclusivo, ninguém quer ser excluído.

Interessante que, ao pé da letra, dá na mesma. Exclusivo também tem o sentido de excludente, ou seja, que exclui. Uma ação de caráter exclusivo, por exemplo, tem como objetivo retirar, limitar a participação de outros.

Quem exclui priva a posse, quem é exclusivo presa pelo privativo. Lindos opostos, sem ser.

Ao ser exclusivo, você exclui. Quer ser único, mas não quer ser o excluído, e sim o excludente.

Mas é aí que está a magia da coisa. Todo mundo quer ser exclusivo, mas ninguém quer ser excluído. E, ao ser exclusivo, você exclui o outro, que muito bem pode ser você. Porque se no mundo de hoje todo mundo é exclusivo, ou os excluídos são os outros, ou são você.

terça-feira, julho 02, 2013

V.I.P. – uma história de café, passado a limpo


Ser especial é tudo, não é mesmo?

Quando eu era criança, diziam que especial é nome de pastel.

Houve um tempo em que especial era a pessoa com deficiência mental.

Mas hoje, todo mundo quer ser especial. Se sentir especial. Mas não quer ter nada a ver com pastel (só se for gourmet) e muito menos com deficiência mental (se bem que reparei que autismo está hype).

Todo mundo quer ser especial.

Tem gente que prefere ser especial do tipo pessoa muito importante. Tem aqueles que optam por ser Prime, Premium, One e tantos outros. Nem os alimentos ou objetos escapam. É gourmet, é gourmand, é releitura, é assinado....

Minha terapeuta me explicou que, normalmente, as crianças desenvolvem essa sensação de sou especial para ajudar a superarem algum trauma na infância e poderem seguir em frente.

Então, das duas uma, ou querem que a gente acredite que tem que ser muito especial para lidarmos com os medos e desafios dessa vida, ou então estamos cercados por milhares de crianças medrosas que só querem voltar correndo para assoar o nariz na barra da saia da mãe.

Todo esse povo lutando tanto para ser tão especial só pode estar realmente com muito medo de olhar para si mesmo e perceber que é feito da mesma matéria e essência que o especial ali do lado. E não existe rótulo nenhum que possa mudar isso.

segunda-feira, junho 10, 2013

Morto de fome - uma história de café, gourmet


O plano nasceu de um desejo. Desejo esse que veio de uma vontade. Vontade a qual surgiu do nada, quando acordou para mais um dia besta.

Não precisava ser muito elaborado, tampouco exigia muita preparação. Visitou o local algumas vezes. Sem entrar, é claro. Passava na porta, olhava o movimento. Olhava para o relógio. Ia embora. Fez isso dias seguidos, em horários alternados, sempre usando uma roupa diferente.

Até que chegou o grande dia. Tomou um banho mais demorado. Colocou uma de suas melhores roupas. Lustrou o sapato. Passou perfume e ajustou cuidadosamente o colarinho.

Saiu de casa confiante. Quando entrou no restaurante caro, o salão estava praticamente vazio, como ele esperava. Passou pelo maitre sem dizer nada, pelos garçons sem nem acenar a cabeça, pelo bar sem nenhuma sede. Entrou na cozinha, sacou o revólver, apontou para o chef e anunciou.

Isso é um assalto. Sirva-me agora um confit de pato com vol-au-vent de aspargos, Dom Pérignon safra 2003 e para a sobremesa, crème brûlée.

quinta-feira, junho 06, 2013

Eu atravesso a rua correndo pro monstro não me pegar – uma história de café, quadrado

atualizado


Vejo as crianças agarradas às grades das escolas, ao umbral das janelas, aos portões dos prédios, aos muros dos condomínios e isso só me faz pensar que a rua é um lugar perigoso.

Vejo os adultos presos aos volantes dos carros, às mesas dos escritórios, às esteiras ergométricas, às paredes dos quartos e isso só me faz pensar que a rua é um lugar perigoso.

Vejo os idosos presos às cartelas de pílulas, aos travesseiros das camas, aos ponteiros dos relógios, aos dias de visitas e isso só me faz pensar que a rua é um lugar perigoso.

Só que não, não é.

Perigo é essa gente que acha que mobilidade é carro, convivência é clube e segurança é o cara de preto.


quinta-feira, maio 02, 2013

Vamos dar uma volta – uma história de café, bem acompanhado



Não era grande fã de animais. Nada contra, até tinha amigos que eram, só não nutria nenhuma paixão por qualquer uma das espécies existentes.

Não que praticasse maldades, muito pelo contrário, admirava todos os seres vivos abençoados por deus nessa nossa existência mesquinha. Entretanto, não sentia necessidade de manter um contato estreito com nenhum deles.

Amava os animais. Eles lá e ele aqui. Era um relacionamento pacífico, amoroso de uma forma platônica até. Não era vegetariano, mas também não pregava a religião da carne. Lutava pela preservação dos bichinhos em extinção, evitava, inclusive, o consumo exagerado de atum, peixe que sofre com a pesca predatória.

Não apoiava a caça às baleias, nem por seu aspecto cultural, não usava roupas de pelo ou couro animal. Apreciava os animais no zoológico, mas achava que eles estariam melhor soltos na natureza. Em resumo, verdadeiramente amava os animais, só não fazia questão de um contato tão próximo.

Nunca tivera a vontade de ter um cachorro, ou um gato. Achava um absurdo manter um pássaro na gaiola, mas quando criança, tivera um porquinho da índia. Pobre animalzinho. Ficou tão grande que mal cabia na pequena jaula e teve que ser doado para alguém dotado de um quintal.

O único animal de estimação que fora capaz de criar com certo sucesso e até uma boa dose de amor foi um peixe. Um não, vários, porque como se sabe, esses peixes de aquário não duram muito, tão delicados, pobrezinhos. Às vezes morrem de fome, às vezes por excesso de comida, às vezes por falta de oxigênio, às vezes por muita sujeira.

Porém cultivava seu aquário de forma modesta, sem grandes alardes. Não o incomodava que os peixes pouca satisfação davam. Que não abanavam o rabo quando ele chegava em casa, que não pulavam em seu colo quando se sentava para descansar no sofá, ou que não emitissem som algum mesmo quando estavam em algum tipo de necessidade.

Era uma relação simples. Ele os alimentava, limpava, dava uma ração mínima de amor. Em troca, os peixes dançavam no aquário e não incomodavam. Mesmo próximos, eram distantes, do jeito que ele gostava.

Mas a natureza da vida não cessa em nos surpreender. E foi quando ele reparou que, sempre que saia de casa, o tapete da porta de entrada insistia em sair também. Sempre achava um jeito de se prender à porta, de ficar um tanto para fora, de espiar a rua, de se insinuar no passeio. Desajeitado, parecia inclusive se contorcer para poder ir também.

E a coisa foi ficando cada vez mais frequente, mais insistente, de modo que um dia, farto da solidão cotidiana e já muito curioso quanto ao comportamento estranho do tapete, decidiu fazer sua vontade. Pegou um barbante, amarrou em torno do pescoço do dito cujo e saiu com ele para passear.

Na rua, percebeu que todos os olhavam, principalmente para o bichinho se arrastando no chão. Num primeiro momento, sentiu vergonha, mas logo o sentimento se transformou em orgulho. Finalmente pertencia a outro grupo de pessoas, aquelas que possuem um animal de estimação e o levam para passear, aquelas que atraem a atenção dos transeuntes, aquelas que, muitas vezes, chamam menos atenção do que os amigos trazidos na coleira.

E pela primeira vez se sentiu completo. O animal de estimação ideal. Não faz sujeira, não faz barulho, não arranha. Só precisa de uma voltinha na rua e pronto, pode voltar para casa feliz da vida e seguir a sua bela rotina de guardar a porta da frente e receber o dono se embolando em seus pés.

terça-feira, abril 16, 2013

Acendi uma vela




Pra apagar a sombra
Pra iluminar a passagem
Pra aquecer o sentido
Pra enxergar o longe
Pra clarear o dúbio
Pra queimar o invisível
Pra consumir o corpo
Pra brilhar o sol
Pra refletir a lua
Pra encontrar a luz
Pra experimentar a brasa

quinta-feira, abril 04, 2013

S – uma história de chá, secreto



Simulando sinais sonoros subaquáticos
Sigo sondando se é sede, fome, ou só sofrego
Sentada solitária na soleira da porta
Seduzo o sábado que chega em total desassossego
É sorte, é santo, é susto é Sartre
É a senhora sapecando um sonho salafrário
De um safado sem sina sofrendo seu surto de desespero
E por severa sabedoria
Ou sábia serventia
Sopro seis sílabas soltas ao vento
Somo sol, suco, semente e soda
Sabendo que sete sempre será o sonho perfeito

terça-feira, março 12, 2013

Eu atravesso a rua correndo pro monstro não me pegar – uma história de café, quadrado


Vejo as crianças agarradas às grades das escolas, ao umbral das janelas, aos portões dos prédios, aos muros dos condomínios e isso só me faz pensar que a rua é um lugar perigoso.

Só que não, não é.

Perigo é essa gente que acha que mobilidade é carro, convivência é clube e segurança é o cara de preto.

quarta-feira, janeiro 30, 2013

Às voltas – uma história de chá com balanço


Um compasso às vezes erra o passo
Pula o acorde
Cai da clave
Perde o ritmo
Não perde a pose
Abre espacate.

Um compasso às vezes esquece a nota
Dá pirueta
Todo perneta
Tonto de alegria
Numa nota só
Gira em disparate.

Um compasso às vezes pensa grande
É um, é dois
É um monte
E ninguém nota
Quando ele volta
É puro descompasse.

quinta-feira, janeiro 24, 2013

Mogno - uma história de chá, amargo


Era delicado. Era frágil. Era sensível. Carne macia. Aparência aveludada. Tez rosada. Como qualquer outro deveria ser. Cresceu. Esticou. Enrijeceu. Começou a acumular. Acumular cores. Acumular pessoas. Acumular imagens. Acumular sentimentos. Acumular emoções. Acumular alegrias. Acumular descobertas. Acumular decepções.

Folha sobre folha. Camada sobre camada. Não sobre não. A casca foi ficando mais forte. O interior mais protegido. O exterior mais arisco. Menos flexível. Mais repetitivo. Mais resistente. Menos penetrável.

O sol entrava menos. A escuridão crescia mais. A carapaça cada vez mais grossa. Partia-se levemente em algum movimento brusco. Nunca mais repetia tal ousadia. Fechava-se a fenda uma vez mais. Pra nunca mais abrir.

Pouco se mexia. Pouco conseguia. Preso, parado na própria prisão que construíra. Olhava assustado. Lá fora. Não. Proteção. Olhava pra dentro. Pouco via. Não tinha por onde entrar luz. Escuro, úmido. Pequeno. Assustado. Fazia esforço para sentir a pele de novo. A pele macia. Não sentia. Era áspero. Era rígido. Era sólido. Era aço. Era o que se fizera ser.

quarta-feira, janeiro 23, 2013

O isqueiro e o homem moderno – uma história de café, faiscando


Proponho aqui um estudo antropológico e comportamental sobre a escolha da cor do isqueiro na sociedade atual.

Isso, aquele isqueiro-bic que pode ser comprado em qualquer banca, padaria, porta de balada e que, apesar de sua utilidade, é um objeto totalmente descartável. Descartável porque, quando em situações sociais, esse tipo de isqueiro dificilmente volta ao seu ponto inicial, parando acidentalmente no bolso, bolsa, ou mão de outrem.

Entretanto, apesar de ser um bem de pouco apego, ao comprar um isqueiro as pessoas geralmente já sabem que ele será perdido, cedido, ou compartilhado para nunca mais voltar, percebo que rola um carinho na hora da escolha da cor do pequeno aparelho incinerante.

Porém, apesar da atenção, trata-se de uma escolha muito limitada. Primeiro limitada pela gama de opções de cores que nunca é muito grande. Ao escolher a cor de uma camisa, ou a nova tonalidade da parede da cozinha é possível ficar louco com a quantidade de alternativas. Mas para um isqueiro, não.

Você tem a cartela com 5 ou 10 opções de cores. Nada muito criativo como verde-água ou salmão. Todas cores mais básicas. Talvez, inclusive, fosse o caso dos profissionais de moda se atentarem a esse grande filão do mercado. Curadoria para escolher a cor do isqueiro, uma para combinar com cada roupa. Listrado, oncinha, xadrez, com babado, degradê, renda, gola rolê. Enfim, você tem lá uma ou meia dezena de cores, todas básicas, preto no branco, amarelo no verde, vermelho no azul.

Todavia, e agora sim chego no cerne da questão, todavia, essas cores vão se extinguindo. O primeiro que chega tem 10 opções, o segundo, 9, e assim sucessivamente até que alguém tenha apenas duas opções, ou o não-tem-tu-vai-tu-mesmo. Não importa se você odeia amarelo. É o que tem, vai ter que levar mesmo assim. Ou você detesta preto e verde, vai ter que escolher o menos pior.

Claro, isso não muda a vida de ninguém, afinal, o importante aqui é a função do objeto e não a sua roupagem, mas na hora da compra, o atendente sempre pergunta “qual cor?”. O comprador pede a que mais lhe agrada, ou menos desagrada, o que é uma decisão que invariavelmente envolve sentimentos. E como não se chatear, se você odeia marrom, e só tem marrom?

Existem, é claro, também as vezes que você sai com um isqueiro branco e volta com um rosa, ou um rosa e um azul, ou sem nenhum também. O que não faz muita diferença no processo todo de escolher a cor do isqueiro. Seu poder de decisão é, portanto, mínimo. Depende de conjunções interplanetárias, posição das nuvens, sorte, casualidade e um tiquinho assim de intervenção divina.

Desta forma, colocando um fim nesse breve estudo, eu concluo que não é você quem escolhe a cor do seu isqueiro, mas a cor do isqueiro que escolhe você.

sexta-feira, janeiro 11, 2013

A fisiologia do automóvel – uma história de café, selvagem

para ler ouvindo


Todo motorista tem um quê de “senhor volante”.

Lembra aquele desenho do Pateta, o cachorro que fala diferentemente do Pluto, em que ele, um indivíduo pacato, se transforma num neurótico sanguinário ao assumir a direção de um carro?

Então, acho que todo ser humano se transforma no senhor volante quando vai dirigir um automóvel. Até a minha mãe, uma das senhorinhas de mais bom coração que eu conheço, vira outra pessoa quando tem duas toneladas em alta velocidade sob seu controle.

Parece que, ao terem o poder sobre um veículo, as pessoas perdem totalmente a empatia com os pedestres, como se não pertencessem mais à mesma espécie. É como se a pele do motorista se transformasse em fibra de carbono, seu sangue em gasolina e seu cérebro em fumaça.

A armadura de lata que protege, também serve para o ataque e é aqui que vou mais além. Já repararam como o visor do carro se transforma perfeitamente em uma mira? Sim, essas de arma.

O motorista tem sempre um quadro à sua frente, delimitado pelas paredes laterais, superior e inferior do carro. Sua visão nunca é total, sempre parcial. Entretanto, acho que isso não seja uma questão de gestalt, e sim de guerra.

Pode reparar, todo motorista quando vê um pedestre atravessando a via, dá uma acelerada só para dar um sustinho. É simples, o pedestre entra no seu campo de visão, ele ajeita o alvo na mira, engata a marcha ou coloca a bala na agulha, e pisa no acelerador ou aperta o gatilho.

O processo é exatamente o mesmo. Mirar, calcular a velocidade e atirar. O mesmo princípio de diversos joguinhos que qualquer um tem no celular, ou que um soldado tem em mente quando entra no campo de batalha.

Perdoem-me, mas todo motorista é um assassino em potencial. Com uma poderosa arma em mãos, um escudo de toneladas e uma cultura que subsidia todos os seus delírios assassinos, ele se vê no direito e, porque não na obrigação, de eliminar os fracos e os inferiores da sua frente.

Darwin. Apenas os mais fortes sobrevivem. E na selva de pedras, se parar o cimento engole, se correr o louco te atropela.

segunda-feira, novembro 12, 2012

Eu vou de guarda-chuva – uma história de chá, encharcado


para ler ouvindo

Eu vou de guarda-chuva.
Tem gente que vai de carro, de kombi, de patins.
Eu vou é de guarda-chuva.
Tem gente também que vai de barco, de caiaqui de jet sky.
Eu vou é de guarda-chuva.
E tem aqueles que vão de bike, de skate, de Saci.
Eu, ainda assim, vou de guarda-chuva.
Tem gente que vai de caminhão, de betoneira, de retroescavadeira.
Eu vou é de guarda-chuva.
Tem gente que vai de bode, de jegue, de jumento.
Eu vou de guarda-chuva.
E tem aqueles que vão de azul, de verde, de vermelho.
Mas eu prefiro ir mesmo de guarda-chuva.
Ainda tem gente que vai de impulso, de obrigação, de lâmpada.
Eu vou mesmo é de guarda-chuva.
Tem quem prefira ir de melancia, de fantasia, de RG.
Aí é que eu vou mesmo de guarda-chuva.
Tem gente que vai de paga-pau, de pogobol, de bate-estaca.
Eu vou mesmo é de guarda-chuva.
Tem gente que vai de mau humor, de isopor, de falsa.
Eu vou é de guarda-chuva.
E também tem gente que vai de joelho, de susto, de espaço.
Mas eu vou é de guarda-chuva.
E aí tem aqueles que vão de cerveja, de uísque, de pirraça.
É então que eu vou mesmo de guarda-chuva.
Mas torço pra que a chuva vire cachaça.

quarta-feira, novembro 07, 2012

Sobre cachorros e gatos – uma história de chá, na rua

Para ler ouvindo


A hora em que os cachorros saem para passear.
Vou marcar meus compromissos para a hora em que os cachorros saem para passear.
Logo cedo de manhã, ou no finzinho da tarde.
Sair para passear é coisa séria entre os cachorros. Sempre à mesma hora. Sempre passando pelos mesmos lugares. Sempre o mesmo poste. Sempre o mesmo vizinho.
Os cachorros têm coisas importantes a fazer. É por isso que mantêm uma rotina estrita.
Farei como eles. Vou me comprometer logo cedo de manhã ou no finzinho da tarde.
Porque no resto do dia, prefiro fazer como os gatos.

terça-feira, outubro 30, 2012

Põe a roupa no varal - uma história de café, geladinho


Para ler ouvindo 

Faz um calor da linha do equador em São Paulo. Segundo a internet, hoje a sensação térmica foi 40 graus. É calor que vem de todos os lados. De cima, de baixo. Do asfalto, dos muros, do cimento, da construção, da britadeira, da escavadeira, do trator, do caminhão, do escapamento, da árvore que não tem.

Alucinando no meu deserto particular, eu sonho com um ar condicionado. Invejo os peixes do aquário curtindo a vida embaixo d'água. Penso em transformar o tanque na área de serviço em banheira. Quero me mudar para a praia. Amaldiçoo todos aqueles com uma piscina particular.

Aí eu tomo um banho gelado. Volto a mim, pra logo depois voltar a malucar. Abro a geladeira só para tomar a fresca. Invento de pegar mais gelo só para ficar mais próxima do congelador. Mas a grande descoberta do dia, essa sim, a grande descoberta do dia foi a roupa no varal.

Roupa no varal é ar condicionado natural. Nada de delírio de lavadeira. Isso aqui é coisa séria. Lava a roupa de cama. Lava a roupa de banho. De preferência, tudo bem pesado pra fazer a diferença. Aí estende tudo no varal e aguarda. É química, é física, é sublime sublimação. Água geladinha evapora, brisa fresca instantânea. Funciona na área de serviço, na laje e no quintal. Faz o teste. Hoje, a grande rainha do lar foi a máquina de lavar.

Ode ao verão – uma história de chá, pelado, pelando


Calor dos diabos. Calor dos infernos.
O inferno é quente. É vermelho. Pega fogo.
É barulhento, é caótico, é de enlouquecer. É nu.
Aqui, na terra dos vivos, isso pode ser luxuria.
Aqui, na terra dos vivos, isso pode ser verão.
O frio não chega a ser de deuses, mas tem um quê celestial.
É azulzinho o frio. É calmo, é tranquilo. É pudico.
Aqui, na terra dos vivos, isso pode ser castidade frígida.
Aqui, na terra dos vivos, isso pode ser inverno.
Que por uma letrinha apenas escapou de ser verão.

sexta-feira, outubro 19, 2012

Gosto de chuva - uma história de chá, com gosto de chuva


Eu gosto de assistir a chuva cair. Gosto de ouvir o barulho da chuva a rolar. Gosto de temporais. Gosto de raios, gosto de trovões. Gosto do cheiro da chuva. Gosto do vento molhado.

Gosto de tomar chuva. Mas só quando tá calor. Gosto que chova o dia inteiro. Mas só quando eu não quero sair de casa. Gosto daquela chuva que cai forte, barulhenta. Mas só se estou escondida em casa, olhando a chuva de soslaio. Gosto de um domingo chuvoso. Mas só se tiver com quem ficar abraçadinha. Gosto de uma segunda-feira de chuva. Mas só se não é feriado.

Gosto de chuva.

Mas prefiro o sol. Eu prefiro o sol. Prefiro muito mais o sol.

Intermission – uma história de chá, jogado


Eu jogo conversa fora.
Mas guardo meus segredos a sete chaves.

Eu falo abobrinha.
Mas não cozinho assunto.

Gosto de bater papo.
Mas não gosto de bater boca.

Gosto de ficar de papo pro ar.
Mas não dou moral pra boca mole.

Eu gosto de botar a boca no mundo.
Mas não coloque meu nome na boca do sapo.

quarta-feira, setembro 26, 2012

O instinto de sobrevivência e a nossa relação com o dinheiro - uma história de café, e apenas isso


A gente faz qualquer coisa para se manter vivo. No desespero, bebe xixi, corta o braço fora, supera alguma fobia.

A gente também faz qualquer coisa pelo dinheiro. É claro que, como dizem, cada um tem seu preço, mas pagando bem, que mal tem?

Acho sim que os dois estão relacionados. Principalmente levando em consideração o modo que vivemos hoje em dia. Dinheiro significa sobrevivência e, muitas vezes, no sentido mais literal da palavra.

E para garantir meios para sobreviver, encara-se, ou acostuma-se com praticamente qualquer coisa. Horas no trânsito, maus tratos, dores físicas, esperas angustiantes, danos morais, desvios éticos e tudo mais que você ou outras pessoas fariam por dinheiro, inclusive o que é considerado errado.

Acredito que, antes da ganância, o ser humano deseje o dinheiro por sobrevivência. Para cuidar de si e da família, para se manter vivo neste plano. Entretanto, sobreviver não é o bastante. É preciso viver, exibir e vencer. Vencer sempre. E é aí que a coisa desanda.

Para mim, é o instinto de sobrevivência que nos faz lutar contra a inércia e ir atrás do dinheiro. Porém, é o instinto de dominação que nos leva a fazer o que for para ter sempre mais.

terça-feira, agosto 07, 2012

São Paulo é uma questão de gestalt – uma história de chá, fora de foco


A luz dourada abrilhanta as folhas verdes.
O céu anil contrasta em destaque.
O vento movimenta a cena, acompanhando o ritmo da melodia que ouço.
Enquanto isso, a crosta de poluição no horizonte me desgasta.

São Paulo é uma questão de gestalt.

Existe beleza. Existe tristeza. Existe poesia. Existe concreto.
Cada um vê o que quer. Do jeito que quer. Quando quer.
Os invisíveis nas calçadas.
O lamento silencioso dos rios.
O desespero nos escritórios.
A solidão de árvores raquíticas e uns tantos ipês.

E como ficam belos os ipês no outono tropical.
De longe parecem ramalhetes de flores secas.
Rosas, roxas, amarelas. Incandescentes.
No quadro. Meu quadro. De fundo azul de brigadeiro.

Aqui, cada um pinta o que quer.
Cada um colore ou descolore como acha.
Mesmo que o cinza impere.
Mesmo que a indiferença prevaleça.
Mesmo que a enganação seja rainha.

Eu escolho o que quero ver hoje.
Provavelmente não é o que gostaria de ver amanhã.
Eu me engano. Da mesma forma que sou enganada diariamente.
E fecho os olhos. E tento não ouvir.
E quando abro, me esforço para ajustar o foco novamente.

quinta-feira, agosto 02, 2012

É bonito ser doente – uma história de café, passando mal


Tenho a impressão de que, hoje em dia, estar doente tá na moda. Talvez seja um problema com o meu universo amostral, já que eu e meu círculo próximo de amigos já entramos na idade de Balzac, abandonamos a ilusão juvenil da imortalidade e já passamos a conviver com as imagens de um futuro senil.

Talvez seja porque vivo em São Paulo onde a poluição ataca os pulmões, o trânsito ataca o estômago, os políticos atacam os rins e o progresso ataca o coração.

Talvez seja tudo isso junto misturado e reforçado com excesso de informação, urgência de resultados e muita falta de paz de espírito.

É competição pra ver quem toma o tarja preta mais mal encarado, quem precisa repor mais vitaminas e nutrientes, quem fez os exames mais absurdos e quem vai nos médicos mais da moda. Sem contar a terapia, é claro. Todo mundo precisa de terapia. É preciso se encaixar à normalidade das coisas. Mesmo que a normalidade seja a necessidade da terapia.

Eu entendo, tem muitos procedimentos que são absolutamente necessários, tem pessoas que realmente precisam disso e daquilo, a ciência evoluiu para nos salvar. Se hoje a expectativa de vida é alta, se deve a todas essas medidas de bom senso dos atuais cidadãos.

Mas, sinceramente, acho que rola um exagero aí. Um grande exagero. As pessoas acabam procurando pelo em ovo, sarna pra se coçar. Vão fuçar num negocinho e de repente estão gastando os tubos em tratamentos alternativos ou de última geração. Porque a medicina também é um negócio muito lucrativo hoje em dia. E todo mundo tem que garantir o seu. E quanto mais gente neurótica procurando mais assunto pra se preocupar, melhor.

Eu que vivo dizendo que não quero ser salva pela ciência, prefiro adotar as preocupações do tempo dos meus avós. Comer bem, sair pra dar uma volta (a pé) pra espairecer a cabeça e dormir bem. O resto é consequência.

sexta-feira, julho 20, 2012

Escondendo tesouros – uma história de chá, impresso


Gosto de encontrar coisas esquecidas dentro de livros. Mais até do que achar dinheiro dentro dos bolsos das calças, bermudas, saias e afins.

Deve ser por causa da história. História não só do livro, mas também da coisa. A página em que se encontra. Se ainda guarda seu cheiro. Que tipo de recordação. Quanto mais antigo melhor. Um pedaço de papel amarelado. Um cartãozinho de uma loja que já não mais existe. Uma anotação. Um poeminha. Talvez uma declaração.

Dedicatórias não contam, apesar de serem interessantes. Mas muito previsíveis. Bom mesmo é virar a página e encontrar o pequeno tesouro. Imaginar quando foi enterrado ali. Qual era o motivo.

Uma rosa amassada. Escurecida pelo tempo, mas ainda assim com o perfume de sua juventude. Bom mesmo para isso são os livros antigos. Lembranças guardadas, adormecidas que se revelam ao contato com o oxigênio. Que despertam com a luz. Sobe até um pozinho de magia.

Melhor ainda são os livros emprestados. Lembranças que não são suas. Pedaços de uma vida que você não viveu. Memórias que não te pertencem. Sentimentos que você não entende. Pequenas joias à imaginação. Entre os dedos aquele pedaço de passado, inerte. Você tenta descobrir o que é. Mas ele não diz nada. Devolve na mesma página. Que ali pertence.

Adoro quando os livos dos sebos vêm com essa pequena lembrancinha. Comercializamos sonhos anônimos também.

Livros eletrônicos? Bah! Quero poder esconder pequenos segredos entre as páginas de todos os livros que leio. Câmara do tempo. Para depois me descuidar. E quando abrir, que não me lembre mesmo. Para que a surpresa seja dupla. E se outro alguém encontrar, melhor. Que um tesouro roubado sempre vale mais.

quarta-feira, julho 11, 2012

Aula de balé – uma história de café, à ribalta


Levo uma vida de bailarina. Vivo na ponta dos pés.

Não por graça ou elegância. Menos ainda por compasso ou vocação.

A realidade é que eu sou baixinha. Mas tão baixa que passo o dia elevando o corpo com a ajuda do dedão e nem me dou conta disso. Só quando me abaixo e reparo no calo que cresce com desenvoltura, alimentado por essa mania de viver tentando alcançar o céu.

Garanto. Nem percebo. Quando vejo, já estou de novo tensionando a panturrilha e ganhando alguns centímetros. Porque centímetros, todo baixinho disputa a tapa. Qualquer centímetro já faz toda a diferença.

Pode ser para alcançar alguma coisa numa prateleira, para conseguir enxergar melhor, para fazer uma confissão ao pé do ouvido, para abraçar, para dançar e até para falar mais alto.

Levo a vida na ponta dos pés. Mas sou desastrada, estabanada, desajeitada. Nunca seria uma boa bailarina. Mesmo assim, insisto. Recuso o salto. Até abraço a sapatilha. E sigo subindo degraus imaginários. Na esperança de que um dia, ao invés da plateia, o mundo é que se curve para mim.

segunda-feira, julho 02, 2012

Domingo – uma história de chá, sem nada de mais


Faz silêncio aos domingos. Dá até pra ouvir um coração bater.
Bambeia. Erra, recomeça. Perde a cadência. Dá uma sambadinha. Requebra desengonçado. Pára. Desiste. Volta outra vez.
Acerta o ritmo. Mantém. Cansa. Suspira. Corre paradinho que é pra aquecer. Depois faz pouco. Relaxa.
Fica ali contemplando o céu azul. De um infinito que oprime. De um calor que amacia. De um brilho que cega.
Já é tarde. A noite é fria. A segunda é próxima. Enrijece. Perde a delicadeza. Se faz preocupação. Anda na pontinha dos pés. Prefere não estar ali. Disfarça. Respira contido. Calculado. Inseguro.
Adormece.
O silêncio engana.

quinta-feira, maio 24, 2012

Viagem de elevador – uma história de café, de 2 andares


Eu pego o elevador para chegar no quinto andar. Quer dizer, eu também pego para chegar ao quarto, ao sexto, ao sétimo. Ao décimo terceiro, com certeza. Ao vigésimo primeiro, indubitavelmente. Mas eu não pego elevador pra chegar ao segundo. Muito menos no primeiro. Terceiro? Talvez. Acho que nunca encarei frente a frente esse desafio.

A verdade é, quando eu posso, eu evito elevador. Não. Não tenho fobia. Ou acho que não tenho. Mas elevador é um troço desconfortável. Se você está sozinho e olha para o espelho, se sente um babaca. Se ele está cheio e você olha para o espelho, se sente mais babaca ainda. Se você encontra um vizinho, tem que achar assunto. E haja assunto se a viagem é longa.

Elevadores corporativos são piores. No horário do almoço, sempre vai apertado. As pessoas espremidas. Risos nervosos. É bom torcer pra não ficar do lado daquele cara que caprichou na cebola crua da salada, ou do outro comendo um picolé.

Pior é quando é só você e mais um. Do sexo oposto. E rola um desconforto. Ou quando entra a mulherada do escritório de moda. E você pensa nas suas roupas e olha para elas. E elas olham para você e a viagem não acaba.

Não há viagem mais longa do que a de elevador. Dura muito mais do que uma viagem de mescalina com ácido. E é muito, incomparavelmente, mais chata, mais cinza, mais apagada e sem diversão. A única parte que salva é aquele friozinho na barriga quando você vai num andar bem alto nesses elevadores velozes que têm que diminuir a velocidade bem próximo da hora de parar. E mesmo assim, não vale a viagem.

Quando eu posso, sempre opto pelas escadas. Pé após pé. Exercitando os joelhos. Joelhos são importantes. É o que eles dizem. E eu concordo. Sim. Mesmo que alguém esteja segurando a porta para mim, eu prefiro a escada. Mas sempre agradeço e tento me explicar, meio sem graça. Nessa hora, é melhor abraçar a causa da fobia e pronto.

O ponto é, não tenho medo dele cair. Não acho o enclausuramento algo exatamente desconfortável. O que realmente me incomoda é a viagem. Aquele tempo paradinho ali dentro, enquanto a caixa sobe ou desce. O cativeiro. A convivência forçada com pessoas que você não precisava encontrar, ou mesmo com um espelho. Não consigo nem pensar na vida dentro de um elevador. Deve ter a ver com a gravidade. É. A gravidade da minha loucura. Só se for.

Elevadores panorâmicos? Bah. Prefiro a solidão de estar no topo sozinha ou embaixo pequenininha no meio da multidão. Quer me convidar para algo, me chama para qualquer coisa. Menos para uma viagem de elevador.  

Psicanálise alternativa - uma história de chá, de ouvido


A psicanálise é uma ciência relativamente nova. Tem pouco mais de 100 anos essa charmosa donzela. Entretanto, está aí cada vez mais viva e altiva nas pseudo análises de revistas femininas, mesas de bar, programas de rádio e, é claro, divãs.

À medida que vamos enlouquecendo um pouquinho mais, com o excesso de informação, o trânsito, a ausência da linha de horizonte, o afastamento da natureza, a culpa pelo tempo ocioso e as muitas novas cobranças pessoais, ela se torna cada vez mais relevante.

Entretanto, com tanta coisa para se preocupar, como o novo modelo de celular, que tipo de frase de efeito postar, como aprender a usar os filtros de fotos para impressionar os amigos e, principalmente os amigos dos amigos, fica faltando tempo para ir ao consultório perder uma hora hora da vida falando de si mesmo, sem contar a outra hora de trânsito, o dinheiro do estacionamento, e talvez de um lanchinho ocasional. A gente resolve tudo isso fazendo compras, cada um faz o tipo de compra que mais lhe convém e pronto.

Por isso eu proponho a novíssima psicanálise baseada nos nossos novos hábitos mais banais. Aquela que vai a fundo nas estúpidas ações de nosso inconsciente que vão deixando rastros inconfundíveis na rotina de nossos dias cada vez mais bestas. Isso posto, sugiro:

A psicanálise da pasta de dente, como o cidadão aperta o tubo pode dizer muito sobre ele
A psicanálise dos tuítes, tá tudo ali gente, nunca foi tão simples
A psicanálise do gosto musical, diga-me o que ouves e te direi quem és
A psicanálise do google, que tipo de coisa você costuma perguntar ao oráculo
A psicanálise da comida por kilo, você pega salada? Carne? Lasanha? Evita o café cortesia?

E por aí vai. É simples, basta observar. Estamos todos, a cada dia, mais pra lá do que pra cá. Não que isso seja mau, nem que seja bom. É que sei lá. Era bom parar um pouquinho, dar uma olhadinha em si mesmo, sem que isso signifique atualizar a página pessoal, e tentar algo novo. Algo que saia da curva. Mas que por favor, não tenha a farmácia em sua parábola.

quinta-feira, abril 12, 2012

Sou feita de fita vermelha – uma história de chá, da sorte


Carrego uma fita vermelha no tornozelo esquerdo.
Pra evitar mau olhado.
Não que eu acredite muito nessas coisas. Mas sei lá, tem umas loucuras que é melhor não contrariar.
E desde que este ano começou, a tal fitinha vermelha insisti em cair.
Só percebo em casa, no banho, quando vou dar atenção aos pés. E aí vejo que meu pedaço vermelho não está mais lá.
Estranho.
Cair assim.
Do nada.
E com essa frequência.
Não que eu acredite muito nessas coisas. Mas sabe, a gente sempre desconfia.
Já devo ter espalhado um pouco do meu escarlate pela cidade.
Estou deixando um rastro.
Quem encontrar, favor devolver ao dono. E se alguém for seguir minhas pistas, que por favor também me ache.
Que posso estar perdida. Um pouquinho em cada canto. E mais um pedacinho além.
Eu amarro outra fita vermelha no tornozelo esquerdo.
E espero que ela me desembarace.